domingo, 14 de março de 2010

Deeply Unreal

O ar de repente tornou-se mais leve, a perpétua prisão em que a noite se mantém tornou-se um pouco mais libertadora, dando espaço para me sentir vulnerável. Tantos sinais mal-entendidos ou simplesmente desviados pelo público. A solidão estava a domar os meus pensamentos.
Toda a vida tive alguém em quem me apoiar e naquela altura estava desamparada. Nunca -talvez ‘nunca’ seja uma palavra demasiado forte – talvez… durante um grande espaço de tempo não me haveria passado pela cabeça que pudesse realmente sentir. Com tantos contratempos tornei-me amarga e manipuladora, deixei de ver. Tornei-me uma viciada por assim dizer -talvez esteja outra vez a exagerar, procurava caminhos fáceis e que não me trouxessem consequências, mas mesmo assim aqui me mantenho! A temperatura está a descer e aperto o blusão. Acendo um simples cigarro e começo a fumar muito lentamente, como se cada pedaço de fumo que 'inspirava' fosse um pecado que cometi e um outro pedaço fosse a minha redenção. Sim, sinto-me arrependida por algumas coisas.

Inspiro profundamente e baixo o braço com o cigarro entre os dedos. Por momentos, inclino a minha cabeça para trás e fecho os olhos. Expiro. As ondas do mar estavam a bater-me violentamente nas pernas, quase derrubando-me para cima da fria areia que já teria estado a ferver a meio da tarde daquele incompreensível dia. Lembro-me que algo me mantinha de pé, que não me fez cair na gélida areia. Alguém, quero dizer. Fortes braços me mantinham ali, naquele local tanto fisicamente como mentalmente. Eles apertavam-me com tanta força…quase que me sufocavam, mas ao mesmo tempo davam-me uma sensação agradável de segurança. Se calhar a minha mente estava simplesmente a pregar-me uma partida bastante ilusória. Talvez estivesse a inventar alguém para que pudesse sentir um porto seguro perto de mim. Comecei a sentir uma suave brisa a aproximar-se do meu pescoço - sim, agora tinha a certeza de que era alguém a aproximar-se muito… lentamente. Voltei a fechar os olhos e deixei-me levar pela sensação de conforto. 'Nada é o que parece ser...'. Aquela vertiginosa frase fez-me recordar a minha antiga pessoa e as minhas antigas acções. De um sentimento de segurança e conforto, passei a sentir um certo terror e perigo. A minha mente estava a voltar á assustadora 'zona cinzenta' do meu passado enquanto o meu corpo se mantinha naquela praia, imóvel. Não queria voltar a recordar tudo, não queria voltar a reviver aquela pessoa mesquinha e calculista. Então algo fez a minha mente voltar á praia onde o meu corpo ainda se mantinha. A maré tinha acabado de virar e o mar tornara-se mais sossegado. A sua violência tinha desaparecido quase por completo. Os braços que ainda me seguravam, tinham começado a apertar-me suavemente. Deixei o cigarro cair e esbater a sua cinza na areia gelada. Num certo movimento, completamente involuntário, agarrei nas mãos existentes nos braços que me rodeavam e desvaneci. Bati tão ingenuamente com os joelhos na areia. Sentia-me completamente desesperada. Os mesmos braços que me mantinham segura puxavam-me contra o corpo a que pertenciam.

Não consigo parar de chorar. As lágrimas escorrem maquinalmente pela minha face sardenta. O vento começou a levantar. Está a tornar-se frio e a noite caminha na minha direcção. Quer envolver-me na escuridão na qual outrora tinha sido a minha casa. Ergui a cabeça tão forçosamente. Não me sentia preparada para enfrentar o que quer que estava a acontecer. ‘Demasiadas emoções num dia só’, costumava ouvir de uma qualquer boca alheia. Começo a achar que essa pessoa tinha razão, as emoções espancaram-me tão agressivamente que mal me sinto viva.

Os olhos castanhos já não o estavam, tinham apanhado um tom mais escuro. Um preto sólido como a cor do céu ao bater das doze badaladas. Como se o monstro tivesse voltado para possuir-me. Voltasse para me fazer sentir indefesa e indecisa. Sinto a cabeça a andar a mil, não me consigo concentrar em nada. Esta sensação não me é desconhecida, não por completo. Há anos que nada me desconcertava assim. Sinto-me uma marioneta nas mãos do meu terrífico mestre.

Voltei atrás, como se num estado de hipnose estivesse.

Num só momento, quando deixei de sentir a misteriosa presença que me impedia de despedaçar em mil e um pedaços, após cair e chorar, tudo se resumiu a uma forte pressão de mim contra o seu peito, onde apenas conseguia cheirar o seu perfume com o cheiro salgado do mar. O mar já longe estava. Encontrava-se mais ou menos a uns três metros, mas estava tão revolto como o meu estado de espírito. Sinto tanto ódio. Não consigo assimilar nada do que está a acontecer. Nada faz sentido. Parece que caí num buraco sem fim, parece que continuo a cair sem o conseguir evitar. Todas as cores frias começam a abraçar-me tentando passar-me o seu calor mas meus olhos não me deixaram ver. Apenas sentia aquele precioso encosto que ainda me envolvia. Sinceramente, nunca cheguei ao fundo do poço, nunca bati mesmo no fundo. Apenas sem rumo, sem mapa, sem caminho, sem direcções, sem orientação. Meus olhos ardiam tão fogosamente que se tornava impossível apagá-los.

Ninguém gosta de se sentir perdido, eu que me encontro perdida há anos ainda não encontrei nenhuma placa com direcções, mas uma pessoa tem que continuar para sobreviver. Eu sobrevivi a tudo e continuo a sobreviver. A lição que tenho vindo a aprender diz-nos que devemos lutar mas mantermo-nos onde estamos. As horas passam. Tik…tak…tik…tak, consigo ouvir o tempo a passar no seu relógio. Desviei o meu olhar para a fogueira que outrora tinha estado acesa. Não passava de cinzas. Onde a gloriosa chama mostrara desprezo pelas estrelas Elas que tanto me guiaram e apoiaram…haviam sido gozadas. Começo a questionar-me se devo repensar no que elas me aconselharam.

‘A caminhada mais longa começa com um pequeno e aperfeiçoado passo’, tal como no ballet, o Adagio. Eu já aperfeiçoei os meus passos o suficiente para deixar de ser mesquinha. ‘Vem comigo…’, aquela voz…sei que a reconheço de algum lado. É-me tão familiar. Nem pensei duas vezes, levantei-me da brilhante areia, inspirei fundo e obedeci-lhe cegamente. Deu-me a mão e levou-me dali. Pisquei os olhos num movimento inutilmente involuntário e quando finalmente me consegui aperceber do que se passava à minha volta, senti-me livre. Senti-me um pouco mais feliz, fora da sombra, fora da assombração da noite de dia treze. O vento entrava pela minha garganta como a água entraria num universo alternativo onde estaria a morrer á sede. Aquela liberdade era tão bem vinda à monotonia atordoada pela intenção de criar um mundo á parte. Sim, eu sei no que vivo e também sei que sempre fui um bocado aluada em relação á maioria das pessoas. Sempre quis um mundo à parte, onde ninguém me atacasse pelas costas, que me apunhalasse, que me mentisse ou que me humilhasse. Nas tentativas de criar esta ilusão que me mantinha á parte do meu pior pesadelo, o mundo real, falhei tantas vezes porque havia sempre algo que me fazia voltar á terra. Voltei a fechar os olhos e rezei:

‘Agradável brisa, suave por mim passa. Saboreando-a sinto-me livre, engolindo-a o meu corpo toma vida.’

Quando abri os olhos, apercebi-me do cliché. Estava a cair. A cair e continuava a fazê-lo, como tantas outras vezes fizera. Mas algo diferente havia. Finalmente não me encontrava ali sozinha. Eram milhares de outras almas perdidas embebidas pelo doce sabor da brisa numa manhã de Primavera. Sem qualquer hesitação, agarrei numa mão que sentia perto da minha mão esquerda. Aquela mão emanava calor e adormecia todo o tipo de males que percorriam as minhas veias. Pensei que o meu mundo de fantasia começou a dar frutos, mas não consigo ter a certeza porque está tudo tão real. Virei a cabeça para a direita e vejo-a descer tão rápido como uma chita atrás da sua presa. Virei a cabeça para a esquerda com curiosidade, para tentar descobrir que alma me tinha ajudado nesta regressão. Quando comecei a ver suas roupas, uma simples t-shirt da mesma cor da sua blusa, branco. Tudo branco ou laranja. Bolas, acabei de perder a coragem. Não quero saber quem é o meu salvador, não quero saber o seu sexo, não quero saber a sua cor de pele, não quero saber a cor de seus olhos. Só quero saber que ali estará para sempre – sim, para sempre. Desta vez não exagerei. Momentaneamente dediquei o meu olhar á queda livre que fazia. Achei estranho o chão estar a aproximar-se, visto que aquela queda estava-me condenada a ser eterna. Tentei de tudo para subir, para voltar ao sítio donde a queda começou, mas o começo não existe. Só o fim. Embati de tal maneira no chão. Senti um rol de emoções a subir-me as formas. Estava tudo a tornar-se confuso. Quase como se de um sonho se tratasse. Desmaiei com tudo o que restava de mim.

Acordei. Apetecia-me sorrir. Apetecia-me gritar pelos pulmões. Apetecia-me saltar. Apetecia-me dançar. Apetecia-me fazer tudo. Um barulho ensurdecedor atacou-me de dentro para fora. Levantei-me repentinamente, ao fazê-lo bati tão abruptamente com a cabeça numa gaveta. Sentei-me e pensei duas vezes antes de voltar a abrir os olhos e ver o que me mirava. Inacreditavelmente tudo não passara dum pesadelo, duma aceitação da consciência ao factor da realidade incontestável. Um aviso. Um jogo. Uma tentativa de susto. Um livro por completar.



Concluí que a vida não é feita de quedas, mas sim de termos que nos levantar por nós próprios. Que esta é a nossa única hipótese de tentar. Não de ser feliz, mas de pelo menos procurar a ideologia que nos faz acreditar na felicidade. Era dia catorze e eu sentia um remoinho fantástico que me enrolava num molhe de folhas de palmeira. Levantei-me e sentei-me na minha secretária de carvalho envelhecido e agarrei na minha pena e escrevi:

‘Hoje sei que não vou voltar atrás.
Hoje sei que não vou ter mais medo.
Hoje sei o que aprendi.
Hoje sei o que és e quem és.’